Desculpe a inconveniência, mas precisamos falar sobre isso

Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão.
Trecho de Vidas Secas, Graciliano Ramos

Fome.

É sobre isso que precisamos falar no Brasil de 2022.

Com 33 milhões de pessoas sem ter o que comer, e mais da metade da população vivendo algum nível de insegurança alimentar, continuar a falar sobre comida com o viés da fartura não é lá muito empático a essa altura do campeonato.

Em pouco mais de um ano, são mais de 14 milhões de pessoas que deixaram de ter o que comer, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil e, sim, precisamos falar sobre isso.


41,3% segurança alimentar
Tem acesso a alimento e nutrientes necessários

 
28% insegurança alimentar leve
Pode encontrar dificuldade para acessar alimento e nutrientes necessários

 
15,2% insegurança alimentar moderada
Os alimentos e nutrientes acessados são rotineiramente insuficientes

 
15,5% insegurança alimentar grave
Privação de alimentos e fome


Por que nós estamos comprando essa briga?
Um dos principais motivos de existirmos tem a ver com o respeito aos alimentos que usamos em nossas receitas, além da valorização das histórias das pessoas que os cultivam. Se quem planta tem cada vez menos comida, segundo o mesmo Inquérito Nacional que citamos acima, essa causa é exatamente o tipo de briga que nós compramos por aqui.


Um pouco sobre a história da fome no Brasil
Mesmo que a crise sanitária do Covid-19 tenha intensificado a fome, não é possível dizer que ela tenha criado sozinha essa situação. O Brasil sempre deu lugar à fome, e a para entender como esse contraste entre a fartura da terra prometida e a escassez que aparece em sua forma mais escancarada, conversamos com algumas pessoas que trouxeram luz a esse monstro que insiste em crescer cada vez mais.

Elaine de Azevedo, nutricionista e socióloga da alimentação, explica que existem quatro fatores essenciais para compreender a situação atual: o genocídio indígena, a falta de políticas assistencialistas após a abolição da escravatura, a Revolução Verde e as medidas tomadas pela ditadura militar.

Pode parecer estranho citar esses fatores para explicar a fome, mas a Elaine explicou ponto a ponto do porquê de cada um deles. “Nosso país promoveu o genocídio indígena e, até hoje, não damos as condições para que esses povos tenham uma sobrevida de qualidade. Os indígenas são perseguidos e retirados de suas terras, então podemos ver a fome cada vez maior entre os nativos do Brasil”.

Da mesma forma que a história foi implacável, e ainda é, com os indígenas, a abolição da escravatura foi feita de forma irresponsável e egoísta de acordo com Elaine. “Não foram dadas aos negros terras, bens e condições para gerar renda e acessar o alimento”.

Garimpo em terras indígenas, por Bruno Lanza                                                                                                                          Por Bruno Lanza

Não bastasse o abismo criado entre os colonizadores, os poucos povos indígenas que sobreviveram ao genocídio, e negros que passaram a sobreviver da subsistência após a abolição, Elaine conta que o conflito foi intensificado com a tal da Revolução Verde, uma medida que oferecia sementes e fertilizantes americanas aos agricultores brasileiros com a promessa de que essas culturas seriam capazes de acabar com a fome.

A Revolução Verde foi criada durante a Guerra Fria como estratégia política para afastar a fome de países subdesenvolvidos que poderiam almejar o socialismo. Entretanto, além de tornar os países dependentes da tecnologia americana, ela foi responsável por criar ainda mais monoculturas que impactaram fortemente na diversidade brasileira e diminuiu a necessidade de mão de obra, contribuindo para o aumento dos índices de pobreza e êxodo rural.

“Então, pessoas que viviam nesse meio rural - os caipiras, quilombolas, ribeirinhos que permaneciam ali, ao menos com a dignidade para comer bem -, foram obrigados a vender as terras e migrar para as franjas da cidade”, explica Elaine.



Para completar o cenário, entre os anos 1964 e 1985 em que imperou o Regime Militar no Brasil, mesmo com o registro do Milagre Econômico entre os anos 68-73 que fez o Brasil crescer em 14% o PIB, a distribuição de renda ao longo desses seis anos ocorreu de forma desigual. Após a derrubada do regime, salário mínimo havia encolhido cerca de 50% de acordo com o Ipeadata, mais uma vez aumentando a desigualdade no país.

Ué, mas aqui não era a terra da fartura?
Se você já leu a Geografia da Fome, de Josué de Castro, deve saber que o fato de milhares de pessoas não acessarem o alimento não tem relação com a quantidade de alimento produzido. Ou seja: existe, sim, comida suficiente para que a fome seja erradicada, mas existe uma lógica econômica que dificulta bastante esse cenário.

A obra Geografia da Fome, de Josué de Castro, foi indicação de todos os nossos entrevistados. Escrito em 1946, o livro continua atual e será relançado neste ano pela editora Todavia.


“Historicamente, a fome é uma desproporção entre a população e seus meios de vida. Com o capitalismo, há uma situação completamente nova. As pessoas são desprovidas de seus meios de produção, portanto, seus meios de vida. Têm que vender sua força de trabalho e, não havendo emprego suficiente, há a fome”, explica Carlos Dório, sociólogo e fundados da Escola do Gosto.

A falta de acesso aos alimentos é gritante, mas a falta de acesso aos nutrientes também é um ponto que merece bastante atenção. Atualmente, 1 em cada 4 adulto é obeso no Brasil, e isso não significa que a segurança alimentar esteja garantida.

De acordo com a historiadora social Adriana Salay, a perda de culturas alimentares tradicionais e a entrada de alimentos industrializados e ultraprocessados na nova classificação de alimentos desemboca no aumento da ingestão de calorias vazias. “A pessoa pode ter acesso a alimentos, estar com sobrepeso ou obesidade, e entrar em uma fase maior de vulnerabilidade. O corpo da pessoa não é mais um parâmetro para falarmos sobre fome”.

Adriana também explica que, por estarmos pautados em grandes indústrias mundiais que têm o controle do que é produzido, vivemos a homogeneização do consumo. Assim, fazemos determinada escolha com a ilusão de que temos liberdade para isso, mas existe todo um sistema que elege por nós um alimento em detrimento de outro que seria mais saudável.

 

A Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública da USP organizou o portal www.geogrrafiadadome.fsp.usp.br para continuar as discussões iniciadas pelo autor há 75 anos. Vale muito à pena!

Helena Guimarães, também fundadora da Escola do Gosto, relembra que desde que a caça foi proibida, uma comunidade que se alimentava majoritariamente pela caça não pode se alimentar mais. “Assim, ela precisa produzir ou prestar algum tipo de mão de obra que ela possa cobrar e conseguir dinheiro para comprar a carne que ela consumia antes”.

Não havendo mais o acesso à fonte natural proteica, outros alimentos de baixo valor nutricional começam a ser introduzidos e assim há a formação do gosto. “Os alimentos vão se dispor como possibilidade de consumo para diferentes tipos de renda. Não há nenhuma chance de superar essas barreiras hierárquicas sem navegar atras da renda, e daí o gosto vai se adequando a isso, porque ele se adequa ao hábito”, completa Dória.

 




Como eu posso ajudar?
Foi unanimidade entre nossas fontes, Helena, Carlos, Adriana e Elaine, que a nossa atuação como sociedade civil é limitada e as medidas efetivas devem ser implementadas pelos setores público e privado.

Elaine de Azevedo diz que a fome a revela o que há de mais egoísta e menos altruísta do ser humano que é a possibilidade de compartilhar, e todas as sociedades têm condições de resolver isso. Entretanto, seria necessária uma reforma agrária, além de políticas de bem-estar social, segurança alimentar e soberania nacional. “A gente já conseguiu sair num prazo curto em 2014, comparado com os 500 anos anteriores. Isso aconteceu devido à força e à potência que as políticas públicas adotadas tiveram para resolver essas questões”.

Mas, já que a fome não espera, participar de projetos de combate à fome e fazer doações são medidas reativas que oferecem algum conforto às pessoas em situação de vulnerabilidade. “Você pode doar tempo, dinheiro, se vincular a um projeto e as vezes até fazer um pouco mais de comida e ver se tem alguém na rua precisando, se você tem um vizinho precisando, e começar a pautar uma comunidade mais estendida do que a forma como a gente encara hoje uma sociedade muito individualizada”, explica Adriana.

Elaine de Azevedo alerta que é importante sempre oferecer o melhor. “Essa ideia de que qualquer comida para pobre serve, é tão fascista como dizer que o pobre não tem direito à comida. Minimizar a fome com qualquer tipo de alimento, como miojo, por exemplo, não é digno. É preciso oferecer nosso melhor”.


Indicações de nossos Kiridos

Adriana Salay
Livro Geografia da Fome. Por Josué de Castro
Atlas das situações alimentares do Brasil, com acesso aberto da internet
Apoio às cozinhas Solidárias do MTST

Carlos Dória e Helena Guimarães
Livro da Maria Carolina de Jesus
Projeto Quebrada Alimentar, da Adriana Salay
Podcast Prato Cheio. Episódio: Fome, uma coisa horrorosa

Elaine de Azevedo
Livro Da fome à fome. Por Tereza Campello
Dossiê O agro é Fome. Le Monde Diplomatique Brasil
Podcast Panela de Impressão. Episódio: Receita Pra Acabar com a Fome


Um guia rápido de escolhas conscientes
Inciativas que combatem o desperdício
Por @cru.do
Comida invisível
Fruta Imperfeita
DuLocal

Alimentos sem veneno com bom custo x benefício
Por @aguanofeijao
Terra e liberdade
Armazém do Campo
Instituto Feira Livre




Deixe um comentário

Observe que os comentários precisam ser aprovados antes de serem publicados

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de privacidade e os Termos de serviço do Google se aplicam.